Meu trabalho como enfermeira sempre foi muito intenso. Escolhi cuidar de pacientes graves. Trabalhei por 10 anos na Semi-Intensiva Adulto e na UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Todos os funcionários dos setores considerados fechados do hospital (UTI, Pronto Atendimento, Centro Cirúrgico e outros) usam o uniforme privativo para trabalhar. E eu sempre gostei de trabalhar usando este uniforme.
Foto: arquivo pessoal
Tive o privilégio de aprender com profissionais maravilhosos e muito competentes. Aprendi sobre as inúmeras drogas, ventiladores, cânulas, sondas, drenos, cateteres, curativos e incontáveis procedimentos que são realizados em um hospital, porém o mais valioso que aprendi foi o cuidado humanizado com os pacientes.
Cuidar de cada paciente como um ser humano único, pensando em sua vida e na vida de seus familiares é profundo e muito gratificante.
Amava meu trabalho como enfermeira, mas na época eu não conhecia os meus limites, tinha dificuldade em pedir ajuda e acabava sobrecarregada. Com frequência voltava para casa e não conseguia me desligar do hospital, ficava pensando e revivendo cenas marcantes que tinham acontecido nos plantões. Chegou uma hora em que eu dormia muito mal e sonhava com eles a noite toda.
Em 2014 eu engravidei e decidi que era hora de me afastar dos trabalhos do hospital. Segui outros caminhos lindos, estudei Reiki, Cristais, Ayurveda, Yoga e Aromaterapia. Comecei a trabalhar como Terapeuta de Ayurveda integrando todos os meus conhecimentos. Conseguia conciliar a maternidade com o meu novo trabalho e estava muito realizada, porém os anos foram passando e eu comecei a sentir saudade da minha vida de enfermeira. Não queria voltar com a mesma rotina exaustiva que tinha antes, mas sabia que precisava voltar para o hospital de alguma forma. Pensava que voltaria para o hospital levando as terapias integrativas, yoga e meditação para os pacientes internados e funcionários, mas a vida não fluiu desta maneira.
Quando a pandemia do COVID-19 chegou no Brasil em 2020, recebi um convite de uma enfermeira do setor de ensino. Foi tudo muito rápido e em poucos dias eu já estava como instrutora nos treinamentos admissionais e em outros treinamentos da equipe de enfermagem.
Foi muito interessante perceber que ainda existia uma enfermeira aqui e eu só precisava resgatar as informações em minha memória.
Desde então, venho treinando muitos auxiliares, técnicos e enfermeiros. Muitos deles atuaram no Hospital de Campanha do Pacaembú.
Foto: arquivo pessoal
E agora em 2021, no auge da segunda onda da pandemia, recebi outro convite. Desta vez para acompanhar os novos funcionários dentro dos quartos da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) destinada a pacientes com Covid.
Meditei em profundidade antes de responder. Aceitei e em poucos dias eu estava no hospital como se fosse a primeira vez.
Cheguei no hospital e caminhei até a fila para pegar o uniforme privativo. Senti uma mistura de sensações e lembraças. Meu coração batia mais rápido e quando chegou a minha vez, logo falei: "Enfermeiro, tamanho M, manga curta". Quando eu disse estas palavras tive uma sensação de Déjà vu. Por 10 anos esta era minha primeira fala pela manhã quando eu chegava no hospital.
A funcionária da rouparia me entregou o uniforme cor de rosa com detalhes em amarelo, roupa que me traz uma recordação muito boa . Cada categoria profissional usa uma cor de uniforme, rosa é a cor usada pelos enfermeiros e o detalhe em amarelo indica o tamanho M. Com o uniforme nas minhas mãos, fui até o vestiário e caminhei até o meu antigo armário. Um filme passou em minha cabeça e lembrei de muitas histórias.
Lembrei do dia em que decidi pedir demissão do hospital em 2014. Trabalhava na semi-intensiva adulto, estava grávida de 7 meses, era domingo e o plantão foi muito difícil. Foram mais de 14h correndo pelos corredores e quartos, resolvendo intercorrências com os pacientes e escutando queixas o dia todo.
Neste dia consegui chegar no vestiário para ir embora lá pelas 21h, sentei no banco em frente do meu armário e percebi que minhas pernas latejavam, minhas costas doíam, estava com dor de cabeça e com fome. Neste momento desabei e chorei muito. Foi um choro libertador, as lágrimas limparam o que precisava e entendi que a vida não precisava ser assim.
Com todas essas lembranças em minha mente, coloquei novamente o uniforme privativo e uma mistura de emoções atravessaram o meu corpo. Respirei fundo e subi para a unidade.
Foto: arquivo pessoal
Caminhei pelos corredores e chegando na UTI Covid que estava escalada, pedi para chamarem o enfermeiro da unidade para me receber, porém ele estava muito ocupado ajudando em uma intubação. Fiquei esperando e vendo a maior correria no corredor. Cheguei em um plantão que tiveram 4 intubações seguidas. No meio da confusão o enfermeiro veio me receber e logo o reconheci. Ele foi um dos meus estagiários na Semi-Intensiva, fiquei feliz em reencontrá-lo. Aos poucos comecei a entrar nos quartos para acompanhar e tirar dúvidas dos funcionários novos e sem experiência.
Foi no olho do furação, vestindo o uniforme privativo e olhando nos olhos do paciente que tinha sido extubado no dia anterior que tive a sensação de estar no lugar certo. Como se tivesse uma pausa no tempo para eu sentir e desfrutar da magia deste lugar em que me sinto confortável e confiante.
Não imaginava o poder que seria vestir novamente o uniforme privativo, entrar nos quartos e estar próxima dos pacientes. Meu corpo e minha mente parecem saber exatamente o que fazer para cuidar de um paciente grave.
Cuidar de pacientes internados em uma UTI é complexo e precisa de muito treinamento. Além de precisarmos de muito conhecimento técnico, lidamos com situações extremas da vida todos os dias e todas as noites. Poder compartilhar meus conhecimentos e minhas experiências com os mais novos tem sido muito gratificante.
A cada funcionário sem experiência que eu acompanho, eu lembro das minhas primeiras vezes. Lembro de quando eu ainda era estagiária e treinava os procedimentos primeiro nos bonecos. E depois de treinar muito fazia os procedimentos nos pacientes, sempre acompanhada de um enfermeiro mais experiente.
No início da minha carreira sempre tive profissionais mais experientes ao meu lado, o que foi fundamental para o meu desenvolvimento.
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